Série
Na Perspectiva do Monstro: Ficções Somáticas e a Estética do Erro
Na Perspectiva do Monstro: Ficções Somáticas e a Estética do Erro
Partindo das contribuições de Foucault, que elabora que o corpo e sua subjetividade se constroem através do contexto cultural, tecnológico e biopolítico, sendo constantemente moldado e reescrito pelas práticas e discursos que o atravessam, investigo aqui a subjetivação, a imagem e as ressonâncias de um corpo trans não binário em hormonização com testosterona e minha relação em trânsito com a modificação corporal. Ao falar em ficção somática, estou sugerindo que o corpo, assim como uma narrativa fictícia, pode ser inventado, transformado e interpretado de maneiras múltiplas. Ele não é um dado imutável, mas um campo de possibilidades, onde intervenções—sejam tecnológicas, artísticas ou discursivas—geram novos significados e configurações.
A ordem colonial hétero-cis-branca projeta a monstruosidade nas identidades subjulgadas por seu regime de poder, arrancando delas sua humanidade. Por muito tempo tentei fugir dessa projeção, buscando tudo (mesmo que frágil) em mim que pudesse me aproximar da forma humana. Meu interesse hoje é ratificar minha identidade monstruosa. Deixar meu corpo monstro subverter os desejos do mundo e articular-se como luz no fim do túnel da cisgeneridade e, quem sabe, da própria transgeneridade. Pisotear a farsa da identidade estática—fazer as pazes com a existência em trânsito.
O látex enquanto pele provoca: o que constitui uma vida monstro e o que a vida do monstro comunica? São perguntas que tento responder nesse percurso, enquanto vejo surgir tantas outras que talvez continuem sem resposta. A pesquisa que desenvolvo é um projeto contínuo que articula o corpo como território de ficções e possibilidades, operando no limiar entre o humano e o alienígena, o andrógino e o mutante.
A produção das esculturas opera em uma lógica processual Frankenstein de invenção de novas criaturas antes impossíveis, navegando a estética do erro, da falha e do desvio da forma humana. A utilização do látex atua como uma metáfora para a pele enquanto linguagem, que dialoga com outros corpos através da representação imagética das normas de gênero, brincando com seus limites e extrapolações. Assumir com brutal honestidade o quão tecnologicamente construídos já são os nossos corpos e tomar para si essa direção criativa é um caminho que acredito e endosso com meu trabalho.
No filme Crimes of The Future, os artistas performáticos de Cronenberg tatuam seus órgãos internos como ato radical de experimentação corporal. Ao transformar os órgãos—e, por consequência, o corpo—em objetos artísticos, eles reescrevem suas próprias identidades num campo em que o que entendemos por humano já não dá conta de explicá-las. Esse gesto artístico desafia a normatividade biológica e provoca os limites da artificialidade da carne, despertando diálogos entre um corpo assumidamente inventado e instituições que se esforçam para naturalizar tais tecnologias culturais-corporais, como a binaridade de gênero.
Essa rebeldia é o fundamento que possibilita o meu próprio processo de transição de gênero. Através de hormônios, tatuagens e procedimentos estéticos, eu não transito de mulher para homem, mas de uma ilusão de estabilidade e naturalidade identitária para uma poética da invenção em trânsito. Assim como os artistas do filme tatuam seus órgãos, eu tatuo minhas esculturas, reivindicando autonomia perante minha pele-língua e expandindo os limites do que é possível para o corpo.
Meu fazer artístico é consequência do afiado compromisso com a inventividade da minha própria existência—é o desenho do meu gênero fazendo as pazes com seu ciborguismo. Uma desobediência à tentativa de controle exercida pela lógica colonial e cristã que dita as formas morais e imorais de se modificar um corpo. Os corpos que crio no meu ateliê-laboratório são monstros no sentido mais produtivo do termo: criaturas marginais descompromissadas com categorias normativas de gênero e identidade, seres contrassexuais rebeldes, com membros mutantes e peles inventadas. Existências que colocam-se no mundo de modo a contraproduzir a natureza enquanto ordem simbólica universal e transcultural. Meu próprio corpo é a escultura primordial errante de onde floresce essa pesquisa.
Vidas monstruosas têm o poder de escancarar a artificialidade da performance, é como o erro se faz caminho de criação. Esse erro que me acompanha até no nome, é mais do que um desvio ou falha técnica—ele é, aqui, a própria potência criativa. Esculpir um corpo disforme e modificado é alcançar o ponto de ruptura que permite tanto a transformação da própria definição da categoria humana quanto o florescimento de subjetividades sujas e inconformáveis. Errar me permite ficcionalizar um futuro que se faz presente através do auto exercício de invenção. Esse futuro-agora se descola da linearidade do tempo ocidental.
Em uma era biopolítica predadora e totalitária, abraçar o erro é, também, rejeitar a transparência, rejeitar a imposição de uma legibilidade colonial cisnormativa sobre a identidade. Como brilhantemente aponta Glissant, ser compreendido é ser reduzido. A beleza da falha é a sua infinitude. Habitar a estética do erro é, portanto, kuir por excelência. Nas fissuras da norma é onde o inacabado e o disforme são celebrados. A falha, ao invés de defeito, torna-se sustentáculo do corpo monstro — um espaço de frutífero que abriga-o em sua complexidade e opacidade, sem necessidade de traduzi-lo ou compreendê-lo totalmente. Falho de forma produtiva.
Quantas memórias guardam um monstro?
2023
163x70x12 cm
Isopor, gesso, látex e tatuagem
Ai pikadinha boa!
2023
44x34x12 cm
Isopor, papel machê, tinta spray,
tinta de tatuagem e seringa
Erro-criatura
2024
130x82x11 cm
Madeira, retalhos de tecido, argamassa, pasta de madeira, papel machê, acrílica, tinta de tatuagem e látex